CONSIDERAÇÕES INICIAIS


A situação de calamidade pública causada pela pandemia da COVID-19 tem mobilizado governos, empresas e cidadãos a tomarem iniciativas em prol do coletivo para mitigar os seus efeitos.

Nesse sentido, tem chamado atenção positivamente os recentes anúncios de doações de bens e serviços realizados por várias empresas para o Poder Público e outras entidades que possuem papel ativo e determinante no combate direto e indireto aos efeitos da COVID-19.

Por apreciar e incentivas essas ações e, com o intuito de contribuir com nossa parte, além de ter realizado diretamente doações a determinadas pessoas e instituições, preparamos esse material com alguns temas relevantes a serem observados a quem pretende fazer doações, para que possa agir de forma adequada e em conformidade com as melhores práticas.

Nos itens abaixo, abordarmos algumas características relevantes das doações, bem como os aspectos societários, de compliance e tributários aplicáveis que as empresas e seus gestores devem se atentar ao fazerem doações, inclusive no âmbito da COVID-19.


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CARACTERÍSTICAS RELEVANTES DAS DOAÇÕES


De acordo com o Código Civil, “considera-se doação o contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra”, apresentando ainda a doação as seguintes características relevantes para os fins aqui previstos:

Objeto da Doação. Podem ser doados quaisquer bens (incluindo recursos financeiros, bens móveis e imóveis) e serviços. Como se verá adiante (item 3), a doação para o Poder Público está restrita a determinados bens e serviços.

Doações Puras (sem encargos) e Doações com Encargos. Doação pura é a realizada sem quaisquer ônus presentes ou futuros relativos ao bem ou serviço oferecido ao donatário, ficando o doador responsável por todos encargos. Já a doação com encargos está sujeita ao cumprimento pelo donatário de determinadas obrigações.

Tais encargos, no caso de um bem, podem se referir a gastos com transferência de propriedade, obrigações fiscais e outras despesas a ele relativas; já no caso de um serviço, se referem, por exemplo, a encargos sociais, obrigações trabalhistas, previdenciárias, fiscais ou decorrentes de acidentes de trabalho.

Esses encargos podem também versar sobre (i) restrição ao bem/serviço transferido; ou (ii) obrigação de fazer ou não fazer, em favor do doador, do donatário ou de terceiros. Ressaltamos que é vedado ao doador impor que o encargo se dê em termos de contrapartida financeira.

Formalização das Doações. A doação pode ser formalizada (i) verbalmente, se versar sobre bens móveis e de pequeno valor e desde que o bem doado seja transferido para o donatário ato contínuo à manifestação da intenção de doar, (ii) por instrumento particular ou (iii) por escritura pública, observada a eventual exigência de instrumento específico na legislação aplicável (tal como a doação de bens imóveis, que exigem a formalização via escritura pública). No Item 3 endereçamos algumas particularidades sobre a formalização de doações para o Poder Público e no Item 4 fazemos algumas recomendações de compliance a serem observadas quando da formalização das doações.


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ASPECTOS SOCIETÁRIOS


Função social da empresa. É sabido que toda empresa tem como fim a geração de lucros para os seus sócios. Mas não é apenas isso. O Código Civil e a Lei das Sociedades por Ações preveem expressamente que as empresas, seus administradores e seus sócios controladores devem atender também a sua respectiva função social.

São exemplos de medidas que visam atender a função social da empresa. (i) geração de empregos, (ii) pagamento de tributos, (iii) fomento ao desenvolvimento econômico, social e cultural da comunidade na qual se insere; (iv) adoção de práticas sustentáveis; e também, (v) as ações voluntárias beneficentes.

A realização de doações é uma espécie de ação beneficente que está intimamente ligada à função social da empresa por promover e tutelar a preservação do bem-estar da comunidade na qual a empresa se insere.

Atuação dos administradores e do acionista controlador. A Lei das Sociedades por Ações prevê expressamente que “[o] conselho de administração ou a diretoria podem autorizar a prática de atos gratuitos razoáveis em benefício dos empregados ou da comunidade de que participe a empresa, tendo em vista suas responsabilidades sociais.”

Por sua vez, o acionista controlador também possui a responsabilidade legal de utilizar de seu poder para fazer com que a empresa cumpra sua função social, considerando que este tem deveres e responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, seus colaboradores e a comunidade na qual atua.

Não obstante, ainda que permitida pela legislação societária, a realização de doações, mesmo em caráter emergencial como o que estamos vivendo, deve obedecer ao padrão de diligência esperado dos administradores e controladores, devendo tais medidas serem adotadas de forma diligente, de boa-fé, de forma desinteressada (sem conflito de interesses) e informada.

É importante e recomendável que sejam observadas eventuais regras contidas nos contratos sociais e estatutos sociais das empresas sobre o órgão competente para aprovar a realização de doações. Na ausência de regras específicas sobre o tema, nas sociedades limitadas a doação deve ser aprovada pelos sócios e nas sociedades por ações pelo Conselho de Administração (se existir) ou pela Diretoria.


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PROCEDIMENTOS APLICÁVEIS ÀS DOAÇÕES


Doações para o Poder Público. Para garantir que doações atinjam os objetivos almejados de forma eficiente e transparente, é fundamental observar procedimentos que lhe confiram racionalidade, motivação e legitimidade.

Não há uma norma geral e cada ente público possui competência para regulamentar a matéria. Por isso é necessário verificar em cada caso a existência de norma específica aplicável ao donatário.

De toda forma, é fundamental observar os princípios da Administração Pública e indicar objetivamente o contexto e a finalidade da doação, vinculando as partes aos compromissos de integridade e prestação de contas (conforme indicado no Item 4).

Caso o ente público donatário não possua norma própria, a legislação federal pode servir de parâmetro. Nela estão regulados dois tipos de procedimentos:

◆  Chamamento Público. Trata-se de um procedimento público e isonômico mais simplificado, divulgado pelo ente donatário para selecionar o(s) doador(es). O ente publica um edital especificando objeto, requisitos e critérios de avaliação do doador (v.g. comprovação de idoneidade, especificações técnicas, quantidade e localidade, entre outros).

União e Estados divulgaram recentemente chamamentos públicos para doações de máscaras, luvas, álcool em gel, testes rápidos, ventiladores eletrônicos e outros bens e serviços para enfrentamento da COVID-19.

◆  Manifestação de Interesse. O doador se identifica formalmente perante o ente e, caso seja do interesse deste, a doação será formalizada por escrito. Nesse caso, a interação com o ente público requer atenção redobrada no registro e arquivo de todas as comunicações (v.g. protocolos, e-mails, atas de reunião, entre outros).

Para viabilizar a apresentação de manifestação de interesse, a União disponibiliza a plataforma “Reuse.Gov”, na qual as ofertas recebidas são divulgadas a todos, inclusive aos demais entes que possam ter interesse em se registrar para receber a doação – estes serão selecionados por ordem cronológica de registro.

Em todo caso, especialmente se não houver regulação específica, sugerimos que a manifestação formal seja apresentada diretamente ao representante legal do ente, respeitadas as melhores práticas de compliance mencionadas no Item 4.

As doações sem encargos para o Poder Público podem ser formalizadas por termo de doação ou declaração firmada pelo doador pessoa jurídica (se forem de menor valor). Quando for realizada com encargos, requer a formalização por contrato de doação.

Doações para entes privados (organizações ou fundos emergenciais). As doações para associações, fundações e/ou quaisquer outros tipos de organizações que não estejam vinculadas diretamente à Administração Pública, não dependem necessariamente dos procedimentos acima. Contudo, será preciso, igualmente, observar as melhores práticas de compliance indicadas no Item 4 abaixo.

Quanto às fundações, como estão sujeitas à fiscalização do Ministério Público do Estado local, é recomendável oficiá-lo a fim de dar publicidade e transparência à doação.

Caso o ente privado seja o intermediário da doação a um ente da Administração Pública, é preciso adotar cautelas adicionais, tais como informar que o ente público é parte interessada, vinculando-o à finalidade da doação e aos demais compromissos de integridade e prestação de contas.


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MELHORES PRÁTICAS DE COMPLIANCE


Background check. É recomendável realizar a verificação prévia reputacional e de integridade do destinatário da doação e dos funcionários do destinatário da doação envolvidos em tal processo.

Demonstração da Finalidade. É importante ter clareza do objetivo da doação, solicitando previamente ao donatário evidências da destinação que será dada aos recursos e que atenderá à finalidade específica de enfrentamento à COVID-19. Importante, ainda, ficar alerta para qualquer suspeita ou incerteza quanto à destinação dos recursos, pois denota a falta de transparência do donatário e seu interlocutor. Recomendamos não prosseguir em tal cenário.

Impessoalidade no trato com Agentes Públicos. Os funcionários da empresa doadora deverão estar devidamente orientados e treinados para se relacionarem com os órgãos e funcionários públicos conforme os princípios que regem a Administração Pública. Os funcionários deverão estar treinados sobre prevenção à corrupção e fraudes à Administração Pública e plenamente capacitados para aplicar as políticas internas, inclusive no que tange ao reporte de pontos de atenção.

Conflito de interesses. Atentar-se para que (i) as doações não sejam distorcidas e utilizadas por candidatos, autoridades ou partidos políticos para autopromoção; (ii) não sejam direcionadas a órgão responsável pela fiscalização da atividade do doador, de modo que possa ser influenciado a atuar de forma parcial; ou (iii) as doações não violem os princípios da Administração Pública. Doações em dinheiro devem receber especial atenção e só devem ser feitas nos casos previstos em lei.

Evitar intermediários. O uso de intermediários aumenta a exposição da empresa doadora a riscos, visto que estes podem não contar com a mesma cultura ética e de integridade imposta pelo compliance da empresa doadora. Tal risco aumenta com relação àqueles terceiros que são completamente novos à empresa doadora e não conhecem ou não foram treinados acerca das políticas internas pertinentes. O uso de funcionários capacitados pela própria empresa doadora torna o procedimento mais seguro e eficaz na detecção e tratamento de eventuais pontos de atenção.

Formalização. Adicionalmente, sugerimos a elaboração de um Termo de Doação que contenha, no mínimo: (i) a disposição de que a doação é um ato de mera liberalidade (sem qualquer interesse ou contrapartida); (ii) dever de cumprir com a legislação anticorrupção e boas práticas de compliance; (iii) procedimentos e cronograma para utilização dos recursos; (iv) obrigação de prestação de contas; (v) obrigações de cooperação, transparência e cumprimento da finalidade específica da doação; (vi) descrição precisa das especificações técnicas, lote do produto, data de validade, manuais de utilização, dentre outras informações necessárias à individualização do bem ou serviço; (vii) não indenização do doador por dano causado em decorrência de má utilização, uso inadequado, uso além da capacidade ou fora das recomendações técnicas e prazo de validade; (viii) reversão ou reconsideração da doação em caso de violação das demais cláusulas contratuais. Sugerimos que esses termos sejam analisados caso a caso, sendo importante, ainda, o cumprimento de normas estaduais ou municipais que contenham disposições específicas sobre o tema.

Plano de acompanhamento e monitoramento das doações. Cientificar previamente o donatário que a empresa doadora acompanhará e monitorará a doação até o momento da efetiva destinação dos recursos, para mitigar o risco de eventual desvio na finalidade estabelecida.

Prestação de Contas. Relacionada ao acompanhamento e monitoramento da doação, pode ser demandada pela empresa doadora para a comprovação de que o recurso foi direcionado à finalidade formalizada no contrato, termo ou declaração de doação, conforme o caso. Caso seja identificado desvio, a empresa doadora poderá, conforme formalizado no instrumento de doação, interromper ou revogar a doação.

Transparência. Garantir a publicidade da doação e, em sendo o caso, divulgá-la por meio de comunicados / fatos relevantes. A publicidade de doação para Administração Pública Federal se restringe a menções informativas, sem cunho publicitário.

Legislação e Políticas Internas. É recomendável estabelecer, formalizar e divulgar diretrizes e procedimentos claros, inclusive para ocasiões excepcionais, respeitando as instâncias internas de aprovação. Políticas internas servem de suporte para os funcionários se preservarem de solicitações desproporcionais ou desarrazoadas sem criar indisposições, podendo embasar a recusa na existência de restrições nas políticas internas da empr


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ASPECTOS TRIBUTÁRIOS


No âmbito tributário, é necessário voltar a atenção para alguns tributos em específico, que podem representar uma oneração para aquele que recebe a doação ou mesmo uma desoneração para aquele que doa.

Incidência do ITCMD. O primeiro deles é o Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (“ITCMD”). Salvo o atendimento dos requisitos legais, as doações, regra geral, submetem-se à sua incidência. Ainda que o contribuinte seja o donatário, o doador pode ser responsabilizado caso o imposto não seja recolhido. Caso não seja possível atender os requisitos para que a doação não seja tributada pelo imposto, dado o ônus para o donatário e o risco para o doador, é recomendável que se avalie a possibilidade do doador recolher o imposto em nome do donatário ou fornecer os recursos necessário para que este realize o recolhimento.

Por ser um imposto de competência estadual, a legislação aplicável varia a depender do Estado, sendo importante se avaliar a legislação do Estado do doador. Abaixo montamos um quadro comparativo com as principais informações relativas ao ITCMD de três Estados (São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais).

Não Incidência/Isenção do ITCMD: A legislação prevê algumas regras de não incidência e isenção que visam desonerar doações que sejam de interesse social.

Essas normas de não incidência devem ser observadas quando das doações em tempo de COVID-19, a fim de afastar os efeitos adversos da incidência do ITCMD. É o que ocorre nos casos de doações cujos beneficiários sejam instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos.

Para tanto, a legislação prevê a necessidade de prévio reconhecimento dessas entidades por parte da Secretaria de Estado da Fazenda (“SEFAZ”) do Estado competente. Elas necessitam: (i) ser certificadas pelo Conselho Nacional do Serviço Social; (ii) não distribuir qualquer parcela de seu patrimônio ou de sua renda, a qualquer título; (iii) aplicar integralmente no País os recursos destinados à manutenção de seus objetivos institucionais; e (iv) manter escrituração de suas receitas e despesas em livros revestidos de formalidades capazes de assegurar sua exatidão.

Há ainda um requisito que é o de que os bens ou direitos doados sejam destinados ao atendimento das finalidades essenciais das entidades. Caso isso não ocorra, haverá a incidência do ITCMD.

Também estão fora do campo de incidência do ITCDM às doações realizadas para a União, Estados, Distrito Federal e Municípios, ou para autarquias e fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, hipótese em que, em princípio, as condições acima não se aplicam.

Por fim, temos ainda a hipótese de isenção, prevista na legislação para os casos de doação de quaisquer bens ou direitos a entidades sem fins lucrativos, cujos objetivos sociais sejam vinculados à promoção dos direitos humanos, da cultura ou à preservação do meio ambiente.

Nesse caso, a legislação prevê igualmente a necessidade de prévio reconhecimento da isenção por parte da SEFAZ, que emite documento denominado “Declaração de Isenção do Imposto sobre Transmissão “Causa Mortis” e Doação de Quaisquer Bens ou Direitos – ITCMD”.

Assim, verifica-se que as doações para entidades vinculadas ao poder público e a entidades sem fins lucrativos, como regra, não ensejam a cobrança do ITCMD. Contudo, antes de se efetuar a doação, é necessário, com base nas características da donatária, verificar se a entidade a ser beneficiada atende os requisitos específicos na legislação para as hipóteses de não incidência ou isenção.

Despesas dedutíveis IRPJ e CSLL: Outro relevante aspecto fiscal da doação é a possibilidade de dedução ou não dos valores doados na base de cálculo do IRPJ e da CSLL (para os contribuintes sujeito à tributação pelo lucro real).

Por se tratar de uma liberalidade, como regra as doações são consideradas como despesas indedutíveis da base de cálculo do IRPJ e da CSLL. Contudo, a legislação previu algumas exceções, que possibilitam essa dedutibilidade.

É o que ocorre no caso das doações que sejam de até 2% do lucro operacional da pessoa jurídica (antes de computada a sua dedução), que sejam efetuadas a entidades civis, legalmente constituídas no País, sem fins lucrativos, e que prestem serviços gratuitos em benefício da comunidade onde atuem.

Nessa hipótese, além de respeitar o limite de 2% do lucro operacional, para que a doação seja dedutível, é necessário que o doador mantenha a disposição da fiscalização, declaração, de acordo com modelo aprovado pela Secretaria da Receita Federal do Brasil do Ministério da Fazenda, fornecida pela entidade beneficiária, com compromisso de aplicar integralmente os recursos recebidos na realização de seus objetivos sociais e de não distribuir lucros, bonificações ou vantagens a dirigentes, mantenedores ou associados, sob nenhuma forma ou pretexto e a identificação da pessoa física responsável pelo seu cumprimento. Ademais, no caso de doações em dinheiro, estas devem se dar por meio de crédito em conta corrente bancária diretamente em nome da entidade beneficiária.

Adicionalmente, a entidade beneficiária deverá ser organização da sociedade civil, conforme disposto na Lei no 13.019, de 31 de julho de 2014 , e, independentemente de certificação, deverá cumprir com os requisitos previstos nos art. 3 e 16 da Lei no 9.790/99.

Por fim, convém ressaltar que a legislação prevê a possibilidade de algumas doações serem deduzidas do imposto de renda apurado e não da base de cálculo.

É o que ocorre nos casos doações realizadas a título de apoio aos Fundos da Criança e do Adolescente e do Idoso, aos patrocínios realizados a título de apoio às atividades culturais ou artísticas, aos investimentos, aos patrocínios e à aquisição de quotas de Funcines, realizados a título de apoio às atividades audiovisuais e aos patrocínios realizados a título de apoio direto a projetos desportivos e paradesportivos.

Cada uma desses incentivos fiscais possuem uma regulamentação específica, de forma que recomendamos a consulta da legislação aplicável antes de proceder com a opção.