A recente aprovação da Lei nº 14.125/21 trouxe para o debate jurídico várias questões relativas ao direito do consumidor, as quais desafiam o intérprete e produzem maiores incertezas para a sociedade, já profundamente atingida pelos efeitos de uma pandemia, que vem se estendendo no tempo muito além do imaginado. A denominada “lei da vacina”” tratou da autorização concedida aos entes federativos e aos particulares para aquisição dos imunizantes e dispõe, em seu artigo 1º, sobre a responsabilidade civil decorrente de “eventos adversos pós-vacinação”.
Os problemas éticos que a aplicação dessa lei suscita merecem enfrentamento adequado, porém os limites do texto permitem apenas lamentar a solução aprovada, que destoa amplamente do projeto constitucional de uma sociedade fundada na solidariedade social (artigo 3º., I da CF). A fórmula concebida pelo legislador consagra a prevalência de interesses patrimoniais sobre valores existenciais e, como se não bastasse, já está em discussão no Parlamento um novo projeto de lei sobre o mesmo assunto, favorecendo ainda mais a ótica privatista de questão afeta à saúde pública.
No auge da tragédia, que neste momento contabiliza mais de 350 mil vidas perdidas, autorizar que pessoas jurídicas de direito privado usem seus recursos financeiros em detrimento das pessoas físicas de direito privado, por assim dizer, em prejuízo de cidadãos, significa corromper valores sociais, franqueando ao “mercado” as escolhas que são atribuídas pela Constituição à administração pública (artigo 196). Há coisas que não devem ser compradas — a vacina contra a Covid-19, no contexto atual, certamente é uma delas. lei das vacinas
Se possível fosse superar o aspecto ético, na seara da responsabilidade civil não andou melhor o legislador. Carente de melhor técnica, a lei ordinária parece ignorar comando constitucional ao atribuir à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios “os riscos referentes à responsabilidade civil, nos termos do instrumento de aquisição ou fornecimento de vacinas celebrado”.
Em sua precária redação, o dispositivo autoriza os entes públicos “a assumir os riscos” relativos aos danos que possam resultar da imunização e sugere que as fornecedoras poderiam impor contratualmente limitações à reparação de danos. A responsabilidade civil do Estado, como se sabe, tem fundamento no artigo 37 §6º. da CF, e, em qualquer caso, prevalece diante de cláusulas de exclusão ou limitação que viessem a ser unilateralmente impostas pelas fabricantes. No Brasil, não é possível conceder a pretendida isenção de responsabilidade às farmacêuticas fornecedoras das vacinas.
Na hipótese de distribuição de vacinas pelo Programa Nacional de Imunização, sem custo para o cidadão, a relação entre este e o fornecedor pessoa jurídica de direito público não se qualificaria como de consumo, por se tratar de serviço remunerado uti universi. Todavia, mesmo submetida a questão ao regime jurídico do direito administrativo, estão asseguradas às possíveis vítimas as prerrogativas atribuídas ao consumidor na defesa de seus direitos, quais sejam, a dispensa da prova da culpa, por se tratar de responsabilidade objetiva, a inversão do ônus da prova, bem como a utilização das ações coletivas para tutela de interesses individuais homogêneos.
O STJ já apreciou a questão específica da responsabilidade do poder público por danos decorrentes de vacinação, em julgamento de 2015, com relatoria do eminente ministro Herman Benjamin, e decidiu que, seja por fundamento “no artigo 927, parágrafo único, do Código Civil ou no artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor, é objetiva a responsabilidade civil do Estado por acidente de consumo decorrente de vacinação”. O autor desta ação indenizatória havia sido vacinado na “Campanha Nacional de Vacinação de Idosos” e desenvolveu a Síndrome Guillan-Barré, passando a “apresentar lesões neurológicas como ausência de mobilidade nos membros inferiores e mobilidade reduzida nos superiores””, tornando-se assim totalmente dependente de cuidados e incapacitado para o trabalho. A defesa fundada em caso fortuito foi rejeitada nos termos do acórdão do Tribunal local, pois “quando o Ministério da Saúde planeja a vacinação em massa (…) chama a si a responsabilidade pelos danos emergentes das previsíveis reações adversas, ainda que em ínfima parcela dos vacinados”. De fato, segundo a OMS, em um milhão de pessoas vacinadas contra a influenza, a taxa de ocorrência deste grave efeito. Os casos individuais, embora raros, são frequentemente os mais graves e jamais poderiam ser excluídos da apreciação do Poder Judiciário.
Por mais remota — e indesejável — que seja, devemos considerar a possibilidade de multiplicação de danos decorrentes da vacinação em massa. Ocorrendo lesão desta natureza, a ação civil coletiva de responsabilidade pelos danos individualmente sofridos, prevista no artigo 91 do CDC, é o instrumento adequado para o ressarcimento de eventuais vítimas de “eventos adversos pós-vacinação”. Todavia, a possibilidade de demandar coletivamente não deve excluir, mas sim fomentar, a busca por alternativas extrajudiciais. A opção pela judicialização não parece ser a melhor, e por várias razões.
Embora a tutela dos interesses individuais homogêneos seja o aspecto mais relevante da proteção coletiva, do ponto de vista econômico, precisamente por representar a possibilidade de compensação efetiva das vítimas de danos, tem sido alvo de inúmeras tentativas de limitação do seu alcance e de comprometimento de sua efetividade. A experiência jurisprudencial brasileira é farta de exemplos de controvérsias relativas à defesa desses interesses, tais como, a legitimidade ativa do Ministério Público, a definição do objeto da demanda pelo critério da homogeneidade dos interesses e da pertinência temática, a necessidade de autorização dos beneficiários e a extensão territorial dos efeitos subjetivos da coisa julgada, cuja limitação foi recentemente eliminada pelo STF, que declarou a inconstitucionalidade do artigo 16 da LACP, com a redação dada pela Lei nº 9.494/97. lei das vacinas
Seja na via coletiva, como individualmente, os autores das ações indenizatórias por efeitos adversos das vacinas enfrentarão dificuldades na efetivação de seus direitos, especialmente pela necessidade de demonstração do nexo causal. Do ponto de vista dos fabricantes, a responsabilização na via judicial, ainda que em ação de regresso promovida pelos entes públicos, poderia ser alegada como motivo para a recusa de fornecimento do produto ao país, notoriamente mal posicionado na corrida mundial pelas vacinas. Do ponto de vista social, tampouco interessaria levar ao Judiciário uma enxurrada de ações, a ponto de comprometer a eficiência da atividade jurisdicional e, pior, disseminar dúvidas sobre a segurança e a eficácia do próprio imunizante.
Em contemplação a esses argumentos, há mais de 50 anos outras soluções têm sido buscadas mundo afora para viabilizar o ressarcimento das vítimas de efeitos adversos das vacinas. Nos Estados Unidos, desde 1988, os pedidos indenizatórios são encaminhados ao National Vaccine Injury Compensation Trust Fund, fundo constituído por recursos dos fabricantes, os quais contribuem através do pagamento de um imposto incidente sobre o preço das vacinas. O sistema é gerido por órgãos de saúde e do Judiciário, que analisam os pedidos indenizatórios sem a formalidade da prova judicial. Além dos EUA, cerca de 20 países adotam solução semelhante, direcionando o gerenciamento das indenizações para fundos e programas criados para tal fim, conforme. lei das vacinas
Os programas de reparação de danos sofridos em decorrência da vacinação refletem a ideia solidarística de que o custo social da imunização deve ser repartido por todos. Este sistema traz vantagens para todos os envolvidos: para os fabricantes, que ficam em melhores condições de gerenciar o pagamento das indenizações, o que se refletirá no preço das vacinas e na pesquisa e desenvolvimento da atividade; para as vítimas, que não precisam arcar com os custos judiciários e se desincumbir de pesado ônus probatório, e para ambas as partes, que assim eliminam as incertezas do processo judicial. Na maioria dos países pesquisados pela OMS, o método de apuração da causalidade utilizado nos programas de compensação obedece a requisitos menos rigorosos do que os da responsabilidade civil, o que evidentemente reforça a posição da vítima, tornando mais acessível a reparação do dano.
Embora programas desta natureza ainda não tenham sido adotados por países em desenvolvimento, instrumentos extrajudiciais de reparação de danos causados por atividades de risco não são desconhecidos no Brasil. No tristemente famoso caso da talidomida, a Lei nº 7.070/82 assegurou às suas vítimas o ressarcimento do dano material, cujo deferimento depende “unicamente da apresentação de atestado médico comprobatório das condições (…) sem qualquer ônus para os interessados”, posteriormente acrescida pela Lei n. 12.190/10 a compensação do dano moral, equivalente ao “pagamento de valor único igual a R$ 50.000,00, multiplicado pelo número dos pontos indicadores da natureza e do grau da dependência resultante da deformidade física”. Outro exemplo a ser lembrado é o da Fundação Renova, que administra o fundo constituído pelos causadores do rompimento da barragem de Fundão, que atingiu a cidade de Mariana (MG). Além dos danos ambientais, de natureza coletiva, a Fundação desenvolve um “Programa de Indenização Mediada” para pagamento de indenizações para os “casos de difícil comprovação dos danos”.
Estes e outros meios de reparação coletiva consolidam a mudança de foco condicionada pelo princípio da solidariedade, na responsabilidade civil, que passa a valorizar não o dano causado, mas sim o prejuízo sofrido pela vítima, o qual interessa a toda a sociedade.
A pandemia do novo coronavírus, da maneira mais dura e dramática, revelou o fracasso de uma visão de mundo em perspectiva individual e patrimonialista, e, ao mesmo tempo, impôs a consciência de uma nova realidade, solidária e existencial. O vírus nos mostra que todos somos vítimas, somos todos culpados e, consequentemente, somos todos responsáveis. lei das vacinas